A porta do meu quarto se abre abruptamente. Por ela, entra meu irmão. Esbaforido, ele tenta concatenar as idéias para elaborar algo que se assemelhasse a uma frase. Eu olhava para ele, incrédulo com a cena. Finalmente ele desafoga:
“Eu vou entrar em campo com o time do América domingo que vem!!!!”
Papéis invertidos: agora era eu que, de olhos escancarados, tentava entender e responder àquilo que me havia sido dito.
“Como é que é? Você vai entrar onde? E com quem?”
Seguiram-se cinco minutos de algo que, sinceramente, não podemos chamar de diálogo. Uma pergunta atropelava uma tentativa de resposta. Um “espera aí” tentava encobrir um “não tô entendendo”. No fim das contas, elucidamos o que se passava: meu irmão Eduardo, então com quinze anos, havia estado no estádio do América para acompanhar um dos últimos treinos do time antes do último jogo contra a Ferroviária de Araraquara e foi convidado a entrar em campo com o time em um jogo oficial do Rubro. Estávamos em 1995 e aquele jogo, o último daquele campeonato, seria decisivo para as pretensões do Rubro de permanecer na primeira divisão. Só uma vitória livraria o time do terrível fantasma do rebaixamento, algo que não acontecia há mais de vinte anos. Lá nas arquibancadas cobertas, mais especificamente no setor das “Sociais” do velho estádio Mário Alves Mendonça, meu irmão assistiu ao treino atentamente e, findado o trabalho de campo, aproveitou para registrar com fotos alguns dos jogadores do elenco para guardar para posteridade no nosso acervo. Um diretor do América o havia visto. O mesmo diretor já o havia notado no ano anterior, aquele em que o América fizera uma campanha simplesmente primorosa, terminando o certame em 5º lugar (melhor time do interior de São Paulo). Meu irmão meio que se tornara “figurinha repetida” nos treinos do Mecão.
“Ei, rapaz... Quer entrar com o time no jogo de domingo?”, perguntou. Óbvio que, no fim das contas, aquilo se tornou uma pergunta retórica.
“Claro!! Como faço?”. E seguiram-se as instruções. Meu irmão deveria chegar ao “Caldeirão” mais cedo no domingo seguinte. Deveria esperar no portão que dava acesso ao vestiário do Mecão. Era através dele que os jogadores e comissão técnica adentravam ao estádio. Esse portão ficava ali na Rua Machado de Assis.
Confesso: fiquei com inveja. Conhecer o vestiário americano, ver os jogadores rezando, entrar com a equipe em campo, ver a torcida fazendo a festa. Mas eu não poderia fazer isso. Naquele ano, eu fazia parte de uma das torcidas organizadas do América. Eu não poderia abandonar os caras justamente naquele último jogo, onde fizemos um pacto de incentivar a equipe americana durante os noventa minutos...
Jogadores perfilados e meu irmão junto deles (ver no destaque - fonte: arquivo pessoal ESF)
O dia do jogo foi um domingo, 11 de junho. Logo cedo, as boas notícias começaram: a Seleção Brasileira engoliu a Inglaterra dentro de Wembley, pela final da Copa da Inglaterra: 3x1, com direito a show de Juninho Paulista, Ronaldo e Edmundo. Um massacre!! Assisti ao jogo na casa do meu pai, tomei uma última cerveja e me pus a caminho da sede da torcida. Almoçar? Pra quê?? A adrenalina não me deixava ter fome... Pelo amor de Deus, o jogo do Mecão valia a sua permanência na primeira divisão!
Chegando lá, arrumamos tudo: bandeiras, faixas, carteirinhas e descemos cedo para o Mário Alves Mendonça, que ficava a dois quarteirões da nossa sede. A movimentação ainda era pequena. Normal: domingão com sol típico de deserto a pino. Só loucos como nós para encarar aquele inferno às duas e meia da tarde. Entramos no estádio. Eu pensava no jogo. Mas pensava também no meu irmão. “Será que ele já está lá dentro do vestiário?”. “Será que deu tudo certo?”. Á época, ainda não havia celulares, por isso desisti de ficar pensando nisso porque eu só saberia o fim de toda essa história após o jogo. Não adiantava ficar penando com esses pensamentos.
Incrível como todos os relógios do mundo estavam quebrados naqueles momentos que precediam a partida. Todos os ponteiros insistiam em não caminhar. O tempo não passava. “Cadê a torcida da Ferroviária?”, perguntávamos. “Será que não virão?”. Poxa, já eram quase quatro horas da tarde, horário marcado para início da partida, e nem sinal dos “Grenás”. E tínhamos certeza que eles viriam, afinal, a “Ferrinha” também corria risco de rebaixamento. Um empate a garantiria na primeira divisão, porém, dependendo dos resultados dos jogos entre Santos e XV de Piracicaba em Santos, e Palmeiras e Bragantino em São Paulo, ela se safaria até com uma derrota.
Quatro horas da tarde. “Cadê os times, p*#@?”. Não havia sinal do América, tampouco da Ferroviária. Não precisei mais do que um minuto para entender o que estava se passando: América e Ferroviária entrariam atrasados em campo para saber, ao final do segundo tempo, como estavam os demais jogos da rodada antes que a sua partida estivesse também encerrada. Artimanha conhecida das velhas raposas que dirigiam os clubes do interior naqueles tempos. Se houvesse uma cartilha para dirigentes dos clubes interioranos, esse ensinamento estaria nos primeiros capítulos.
Vinte minutos depois, entra em campo a Ferroviária. Como visitante naquele dia, a Ferrinha entrou com seu uniforme número 2: camisas, calções e meias todos na cor branca. Mais três minutos e entra o América com seu uniforme tradicional: camisas e meias na cor vermelha e calções na cor branca. E lá estava meu irmão. “O filho da mãe conseguiu”, pensei. Entrou com o zagueiro Marcelão, bateu a tradicional foto com o elenco perfilado. Enfim: fez "cabelo, barba e bigode". Ainda acenou para mim, provavelmente querendo repartir um pouco daquele momento comigo. Não funcionou. Eu queria estar ali com ele também. Mas foi legal ver que ele estava ali realizando um sonho. O pôster do time que jogou essa partida, com meu irmão posando junto dos jogadores, está lá pendurado em uma das paredes de seu antigo quarto, na casa dos meus velhos pais. Os fiscais da Federação Paulista de Futebol sofreram para conseguir expulsar aquela molecada toda de dentro do gramado para que o jogo se iniciasse. Meu irmão foi um dos últimos a sair. Se deixassem, acho que ele jogaria aquela partida junto com o time...
Jogadores orando antes de entrar em campo. Do lado direito, meu irmão Eduardo entrando em campo com o zagueiro Marcelão (fonte: arquivo pessoal ESF)
O Mecão estava com o time muito desfalcado para aquele embate. O elenco estava desfigurado por conta de contusões ocorridas com seus principais jogadores durante o campeonato. Para esse último jogo do Paulistão de 1995, o América chegava sem seu principal goleador dos últimos dois anos, o matador Cacaio. Seu zagueiro central, Renato Carioca, titular absoluto neste e no último certame, também estava fora. Assim como Pestana, meia que compunha o cérebro do meio-campo do nosso time junto com seu fiel escudeiro, o meia-direita Edson Pezinho. O lateral direito Ednan foi improvisado na sua posição, sendo escalado no seu lugar o “prata-da-casa” Roberto Alves. Para encerrar a "lista dos fora de combate", mais dois desfalques relevantes: o lateral esquerdo Róbinson e o goleiro Neneca. Enfim, não havia muito no que pensar: o jeito era ir para a guerra com os soldados disponíveis. O que me preocupava era decidir alguma coisa com a Ferroviária.
Time “irmão” do América, por conta de terem nascido sob a batuta de um mesmo fundador, o Sr. Antônio Tavares Pereira Lima, a Ferroviária havia derramado água no chop americano nas duas últimas, digamos, decisões em que ambas equipes haviam disputado. A primeira delas foi em 1985, em uma partida que praticamente decidiria qual dos dois clubes iria para semifinal daquele certame. Perdemos dentro do MAM por 0x2. Oito anos depois, com os dois times na segunda divisão do Paulistão do ano de 1993, porém, com o acesso já garantido para a primeira divisão do Campeonato Paulista do ano seguinte, ambos lutavam pela possibilidade de disputar o quadrangular contra os grandes clubes da capital paulista, fato previsto no regulamento. Só empatamos em 1x1 dentro do MAM e praticamente demos adeus a essa possibilidade. E agora, lutando para não cair, lá estávamos nós contra a Ferroviária novamente.
Os primeiros momentos da partida mostraram os dois times se estudando. A Ferroviária parecia mais preocupada em olhar para o seu banco de reservas, procurando informações dos jogos Santos x XV de Piracicaba e Palmeiras x Bragantino. O Palmeiras fez 2x0 em pouco tempo. Só que o alento que a equipe grená procurava veio apenas aos vinte minutos, quando os enferrujados alto-falantes do "Caldeirão do Diabo" anunciaram que o Santos também fizera seu gol. Com essa combinação de resultados, a Ferroviária se safaria do rebaixamento, independentemente do resultado da sua partida contra o Rubro. Os resultados foram uma ótima notícia também para o América, por isso a torcida vibrou muito. Mais por alívio, menos por alegria. Faltava agora o gol do América. Edinan de falta, Serginho Carioca e Edson Pezinho, ambos de cabeça, perderam as chances do América. Em um rápido contra-ataque, Carlinhos entrou pela esquerda do ataque afeano e chutou com muito perigo, fazendo calar o MAM lotado. O primeiro tempo acaba com o América pressionando, porém, sem chegar ao seu gol. 0x0.
Cléber: mostrou a raça de sempre mas não conseguiu marcar seu gol (fonte: Diário da Região)
Estávamos todos nervosos na torcida. O jogo estava difícil. Mas havia algo que nos acalmava: a Ferroviária estava definitivamente salva, afinal, foram anunciados o segundo e o terceiro gol do Santos. Seus jogadores saberiam disso no vestiário. Ninguém ali imaginava, por exemplo, que o time grená fosse entregar o jogo, mas seus jogadores poderiam entrar mais aliviados e, talvez, menos concentrados. Não foi isso que aconteceu. O time voltou defendendo forte. Os jogadores do América voltaram muito, muito nervosos. Mesmo os passes de curta distância teimavam em dar errado. Cléber estava apagado. Dílson, o outro atacante, que chegara ao final do campeonato, dada a quantidade de contusões no ataque americano, também estava mal e acabou substituído. A Ferroviária não nos dava mais sustos em seus ataques, mas sua defesa continuava sólida. Serginho Carioca cabeceou novamente uma bola com perigo. Dessa vez, ela foi no travessão. Era pouco mais de vinte minutos do segundo tempo. E os alto-falantes, em um gesto desesperado, começaram a anunciar algo do qual eu nunca mais vou me esquecer:
“Atenção, atenção! Em Santos, final de jogo: Santos 4x0 XV de Piracicaba. XV de Piracicaba rebaixado! Em São Paulo, final de jogo: Palmeiras 2x0 Bragantino. Bragantino rebaixado! A Ferroviária está salva! A Ferroviária está na primeira divisão!”. O anúncio, na verdade, era quase um pedido: “Pelo amor de Deus, deixem o América fazer o seu gol e se salvar junto com vocês!”.
Como dito em um parágrafo anterior, o jogo do América começara com quase meia-hora de atraso. Portanto, mesmo com os jogos da rodada todos recém-encerrados, restava ainda uma boa réstia de tempo no jogo do América. Aquela ponta de esperança de que o gol do América viria se transformara agora em agonia. Sim, pois o gol não saía. Eu não chacoalhava mais a bandeira que estava sob minha responsabilidade na torcida. Na verdade, eu me escorava no mastro. Olhava incrédulo para o gramado, vendo os jogadores buscando o gol. Escutava ao fundo os gritos da torcida da Ferroviária. Sim, eles haviam chegado. Atrasaram-se, mas chegaram. Fui saber depois que o ônibus que os conduzia a São José do Rio Preto havia quebrado. Infelicidade que permitiu que chegassem ao MAM apenas no início do segundo-tempo.
O jogo foi nervoso, com a Ferroviária comparecendo ao ataque (fonte: Diário da Região)
Mas havia um Deus olhando pelo Diabo. Edson Pezinho recebeu um passe na transversal, a uns cinco metros da meia-lua da grande área da Ferroviária. Projetou-se à frente de seu marcador que, com os braços, deslocou-o empurrando suas costas. Falta perigosa. Edinan se apresentou para a cobrança. Lateral do América por muitos anos, Edinan passava longe de ser unanimidade junto à torcida americana. Eu acho que ele tinha mais detratores do que apreciadores. Seu jeitão meio lento irritava muitos que cobravam dele uma postura mais ágil no apoio ao ataque. Contava muitos pontos a seu favor algo que o presidente Benedito Teixeira revelou em uma entrevista a um jornal da minha São José do Rio Preto anos antes. O dirigente máximo do América por décadas confessou que tinha um carinho especial pelo jogador e também pelo volante Negão. Porque eles foram alguns dos poucos jogadores que, confiando na palavra do presidente, entraram em campo em outras oportunidades usando nosso manto cor de sangue com seus respectivos contratos vencidos. Algo inimaginável nos dias de hoje. Pois, naquele dia, como recompensa pela sua atitude e amor para com o América, o destino reservou algo especial para Edinan. Seria naquela falta. Naquele momento em que o América precisava tanto de um gol. Ele correu e bateu seco na bola. De três dedos. A bola viajou rasteira, rápida e certeira. E foi morrer no canto direito do goleiro Paulo Sérgio da Ferroviária, ali no gol do tobogã. 1x0!!
Momentos após o gol do Edinan. Torcida em festa (fonte: arquivo pessoal ESF)
O Caldeirão explodiu. Gritos de desabafo. Gritos de alegria. Gritos de amor. Foi um daqueles momentos onde você abraçava a pessoa do seu lado, mesmo que ela fosse um completo desconhecido. Se ela estava ali, ela era um torcedor americano e merecia um efusivo abraço de comemoração. Inesquecível. Edinan junta as mãos, olha para o céu e agradece. Agradece pelo momento, pela dádiva recebida. Agradece por ser ele o protagonista dessa cena que entrou para a história americana.
O jogo praticamente acabou ali. Agora, era a defesa do América que se adiantava e montava uma muralha intransponível. Nosso goleiro Williams não precisou mais trabalhar, apesar de manter-se alerta, como era a sua característica. E o jogo caminhou para o seu final sem maiores sustos. As bandeiras foram tremuladas com força e orgulho. Gritávamos a plenos pulmões canções em louvor ao nosso Mecão. O restante da arquibancada nos acompanhava. “Rebaixamento??? Não, hoje não!!! Nós vamos inaugurar nosso estádio ano que vem na primeira divisão, p*#@!!”, urrava eu, batendo com minhas mãos no meu peito, ali onde estava o símbolo do meu América na minha camisa.
O juiz estrila o seu apito. Fim do embate. O campo foi invadido. Um-a-um, os jogadores do América desabaram no gramado. Estavam esgotados. Felizes, mas esgotados. Alguns eram carregados nos ombros. Negão, volante que defendeu as cores americanas por mais de uma década, chorava copiosamente. Edinan também. Vários outros torcedores também. Comemoramos muito. Nossa tradição valia cada soco no ar.
Dois heróis emocionados e vitoriosos: o volante Negão e o herói Edinan, camisa 2,se levantando do gramado do MAM (fonte: Diário da Região)
Com o espírito alimentado, nos pusemos a recolher nossa indumentária. Bandeiras, faixas, percussão prontas para pegar o caminho da sede da torcida. Antes, passamos no setor onde estava a torcida afeana. Nos abraçamos como amigos de longa data. Éramos irmãos vindos do mesmo pai, porém, residindo em cidades diferentes. Comemoramos juntos nossas conquistas em comum (sim, aquilo era uma conquista!). Batemos um animado papo com todos. Batemos fotos, despedimo-nos e, então, fomos embora.
Torcida da Ferroviária interagindo com a torcida americana após o término da partida (fonte: arquivo pessoal ESF)
Na saída, procurei pelo meu irmão no gramado. Não o vi. Fui reencontrá-lo em casa, onde meu pai já me esperava com uma cerveja gelada. Meu velho não se continha de tanta animação. Meu irmão estava com ele. Falava pelos cotovelos. E me falou do momento em que estava dentro do vestiário, vendo a oração dos jogadores nos corredores e, junto com outros garotos e garotas, ouviu a orientação do diretor do Mecão:
“Tentem ficar em campo o máximo que conseguirem!”, foi o pedido. Você se lembra, caro leitor, que o jogo do América começou atrasado em relação aos demais jogos da rodada? Pois é. Um dos subterfúgios para que isso acontecesse foi colocar aquela horda de moleques entrando em campo junto com os jogadores. Foi por isso que meu irmão fora convidado para o evento. E ele seguiu a orientação à risca:
“Teve um fiscal da Federação que veio atrás de mim. Tentou me pegar pelo braço, mas eu o driblei e fiquei mais um pouco no gramado! Pô, eu ajudei o América a ficar na primeira divisão com aquele drible, você não acha?”, disse meu irmão com os olhos transbordando orgulho.
“Mas é claro que sim!!!”, concordei.
Vinte segundos no gramado que ajudaram a valer a nossa permanência na primeira divisão. Um pequeno guerreiro que lutou nessa guerra e que fez aquilo que lhe era possível. O América (e nós) te agradecemos, meu irmão!
Meu irmão, na penumbra do corredor do vestiário americano no MAM, pronto para ir para a sua missão
naquela tarde de domingo (fonte: arquivo pessoal ESF)