Exigir exclusividade de um moleque de 12 anos é covardia. Nessa idade, há sempre um tsunami de novidades passando por cima da vida de cada um de nós. Por isso, em que pese minha devoção pelo América estar mais presente do que nunca, não dá nem pra sonhar em dizer que era só a essa paixão que eu me dedicava lá pelos idos de 1984. Tínhamos os bailinhos de sábado à noite, os torneios de futebol de botão, os "rachas" futebolísticos de final de tarde, com todos os moleques do bairro se engalfinhando no asfalto quente da r. Humaitá, as primeiras idas ao cinema com o grupo de amigos com quem a gente tinha mais afinidade... E havia também os "projetos solo" típicos de qualquer pré-adolescente: devorar gibis (no meu caso, "Pelezinho" da turma do Maurício de Souza), ouvir meus primeiros discos de vinil (os famosos "bolachões"), andar de bicicleta desbravando bairros nunca dantes explorados e, é claro, estudar. Em resumo: agenda lotadíssima.
Meu pai trabalhava de segunda a sexta no seu emprego principal e aos sábados à noite, quase sempre, ainda pegava uns "bicos" como garçom em um bufê comandado por um amigo dos seus tempos de solteiro. Como meu irmão Eduardo era novinho (4 anos de idade), eu meio que ficava de "babá" nessas noites de sábado para dar uma ajuda a minha mãe, visto que meu pai não estava em casa. Por sorte, meu irmão sempre foi comportado. Brincava com qualquer coisa que eu lhe desse para entretê-lo. Com um dos meus antigos caminhõezinhos na mão, ele passava horas brincando e me deixando-me à vontade para armar uma partida de futebol de botão no chão da sala, com o som da televisão fazendo "fundo musical" para a partida. Já fazia um ano que, em sábados como esse, eu seguia essa rotina. E, com a TV sintonizada na antiga emissora RTC (atual TV Cultura), eu jogava a minha partida de futebol de botão, com o programa "Som Pop" servindo de "trilha sonora". Explicando para os menos avisados: o "Som Pop" foi um dos programas pioneiros na veiculação de videoclipes na TV brasileira. Houve outros antes dele, em outros canais de TV, mas para o interior de São Paulo, para a minha geração, esse foi o primeiro. A cada nova edição do "Som Pop", sempre havia um ou outro clipe que me agradava mais, mas nada que chamasse demais minha atenção. Até que, num sábado de 1983, ouvi um estrondo vindo da TV e, em seguida, um riff de guitarra que fez minha alma gelar: era a música "Unchained", da banda americana Van Halen. Naquele dia, eu parei o meu jogo de botão e fiquei vendo o clipe até o final. Chamou-me demais a atenção a paixão com que o guitarrista da banda, o holandês naturalizado americano Edward Van Halen, empunhava sua guitarra com corpo cheio de faixas vermelhas. Aquilo foi um divisor de águas na minha vida. Porque, a partir dali, tornei-me um ávido colecionador de discos, em especial daqueles de rock and roll (hábito esse que tenho até os dias de hoje).
Edward Van Halen, guitarrista da banda Van Halen.
Voltando a 1984, mais precisamente a um sábado, dia 21 de abril, o América jogaria contra o Marília pela primeira rodada do segundo turno de um torneio pré-Paulistão batizado de "Torneio Esperança". Como o grande barato era o Campeonato Paulista, e o América não havia começado bem aquele torneio (uma vitória, três empates e uma derrota no primeiro turno), satisfazia-me ouvir os jogos do time pelo rádio. Meu pai iria trabalhar naquele dia, portanto, já estava planejando a mesma rotina dos sábados em que meu velho não estava em casa. Só que, lá pela hora do almoço, resolvi arriscar e pedir a ele se eu não poderia ir ao estádio sozinho. O público que acompanhava os jogos naquele torneio era pequeno (média de 200 a 400 pessoas), portanto, ir ao estádio não era nada tão "perigoso" para um garoto de 12 anos. E tinha uma outra vantagem: o torneio era patrocinado por uma marca de pilhas famosa à época. Se você comparecesse ao estádio usando uma camiseta nas cores padrão da referida pilha e levando consigo duas pilhas usadas, a entrada era gratuita. Para minha surpresa, meu pai autorizou a minha empreitada. Pediu para que eu me arrumasse que ele me largaria na entrada do estádio, que era caminho do local onde ele trabalharia naquela noite. Às quatro da tarde em ponto, deixamos nossa casa e pusemo-nos a caminhar rumo ao antigo Mário Alves Mendonça. O jogo começaria às cinco da tarde, se não me falha a memória. Mesmo morando a cinco quadras do velho M.A.M., meu pai fazia questão de chegar com antecedência. E assim foi: na entrada do estádio conhecida como "entrada do cemitério", meu pai se certificou de que eu estava do lado de dentro do estádio, atravessou a rua e, de lá, me viu subindo as arquibancadas e acenando para ele. Ainda deu pra ouvir uma última recomendação: "Quando acabar o jogo, direto pra casa, certo?". Pois é... Era a minha primeira vez em um estádio de futebol... sozinho! Confesso: fiquei meio tenso. Mas foi só ver o América entrando em campo (camisas vermelhas com três faixas brancas nos ombros) que a tensão "ruim" se foi. Ficou só a tensão "normal" de acompanhar um jogo do Rubro. E, no meio do time do América daquela tarde, havia um jogador que era um grande barato de se assistir: seu nome era Roberto Biônico.
Roberto Biônico tinha o perfil do jogador "bad boy". Cabelo comprido, meias arriadas, camisa pra fora do calção, encrenqueiro... mas era matador! Não tinha medo de zagueiro durão, ia pra cima sem medo de levar pancada. Até porque ele também dava as suas. Já havia jogado duas temporadas pelo América. Da última, de 1983, eu me lembrava claramente. Ele fez um primeiro turno muito ruim, tal como todo o elenco do América (o que jogou o clube para a zona de rebaixamento). No segundo turno, com a chegada do velho João Avelino, o salvador "71", Biônico começou a jogar bola e o América embalou. João Avelino era durão. Biônico também. Essa relação era tensa, mas sadia para o América. Biônico jogava mal num jogo, Avelino ia lá e o sacava na partida seguinte. Na outra, ele escalava de novo o centro-avante como titular e ele voltava sedento de sangue. E foi assim que o América terminou aquele Paulistão na oitava colocação.
Tinha quase certeza de que o Roberto Biônico não ficaria para a temporada 84. Mas o técnico Candinho (ex-Portuguesa) o estava testando com a certeza de que ele seria o seu centro-avante para aquele ano. E foi nesse meu primeiro "programa solo" no M.A.M. que vi o Biônico jogar uma das suas partidas mais épicas. O Marília começou melhor fazendo um a zero com o centro-avante Zé Guimarães, ex-Francana. O América foi pra cima, criou várias chances, mas nada de empatar. No segundo, o América veio como uma escavadeira para cima do Marília e foi achando os seus gols, um atrás do outro. Aos sete minutos, Biônico guardou seu primeiro tento. Aos dezesseis minutos, o velho meia-esquerda Toninho virou a partida. Aos vinte e três, Biônico fez o seu segundo gol na partida, o terceiro do América. E, para fechar a fatura, a então revelação Paulo César Catonoce (que foi para o Corínthians na temporada de 1987) encerrou a fatura: 4x1.
Roberto Biônico fazendo o primeiro gol e vencendo o goleiro Luis Andrade do MAC.
Hoje, um placar desses parece normal. Mas goleadas eram raras naquele tempo. Logo, explica-se o porquê d'eu estar com um sorriso de orelha a orelha ao fim da partida. Havia sido um sábado perfeito. Sem contar que, ao final da partida, com o apito final do juiz, Roberto Biônico foi saudado pelos quatro cantos do estádio. Era mesmo um "bad boy", mas era também respeitoso. Levou a mão ao escudo. Esticou-o até a boca, beijando-o sem economia. Com o braço erguido, o punho cerrado e o longo cabelo suado caindo pela face, saudou a torcida. E assim o fez até descer pelo vestiário de corredor escuro do velho M.A.M. E naquele dia, talvez guardando aquela imagem que está na minha memória até hoje vividamente, uma outra me veio à mente, tentando se sobrepor à do Biônico. Era a imagem do guitarrista Edward Van Halen, fazendo a mesma saudação de braço erguido e punho cerrado no clipe da música "Unchained". A mesma que falei que "abriu-me os ouvidos" para a música de maneira geral. Por que, diabos, as duas imagens vinham ao mesmo tempo à minha cabeça naquele momento?
Hoje eu entendo: ambos, Edward Van Halen e Roberto Biônico, eram bons demais naquilo que faziam. E ambos eram rock and roll até o último fio de cabelo. E continuam inesquecíveis.