O Paulistão de 1986 foi quase um ponto fora da reta. Foi nesse certame que o estado de São Paulo viu, pela primeira vez, um time do interior se sagrar campeão – a surpreendente Internacional de Limeira, de elenco humilde porém indubitavelmente azeitado, comandado pelo experiente Pepe. O Palmeiras, derrotado incontestavelmente pelo clube limeirense na final, completava, então, dez anos sem títulos. Por outro lado, o alviverde venceu de forma contundente jogos contra o arquirrival Corínthians (5x1 no segundo turno e 3x0 na segunda partida do quadrangular final). O artilheiro do campeonato voltava a ser um jogador de um clube do interior – o espetacular Kita, da campeã, Inter de Limeira. O São Paulo disputara um campeonato absolutamente apagado, depois de se sagrar campeão no ano anterior. O Santos conseguiu a proeza de ser o pior clube do segundo turno. E foi também nesse campeonato que o América viveu uma verdadeira "montanha-russa" em termos de desempenho nos dois turnos. E viveu também um dos episódios mais obscuros de sua história...
O início da jornada de trinta e oito jogos do Rubro não poderia ter sido melhor: empate em 1x1 contra o São Paulo, dentro do Morumbi. Porém, depois disso, o time dirigido pelo técnico Borba Filho desceu ribanceira abaixo. Empates e derrotas se sucederam até que o técnico fosse demitido sem que o time tivesse vencido nenhuma partida. Apesar de o elenco ter a espinha dorsal composta por jogadores das duas últimas (ótimas) temporadas, o time simplesmente não funcionava. O amuleto "compadre" Ambrózio assumiu o clube, mas igualmente não conseguiu fazê-lo render. Nos doze jogos iniciais disputados pelo Mecão, uma única vitória foi conquistada. O time, obviamente, estava soterrado na lanterna do certame, por conta do pífio aproveitamento. E eis que o velho "71" é chamado para salvar a festa...
O folclórico João Avelino, dono do numérico apelido, havia chegado. E, tal como em anos anteriores, botou os pingos nos "i" já na primeira partida: vitória de 1x0 sobre o Palmeiras dentro do "caldeirão" Mário Alves Mendonça, com o time jogando uma partida esplendorosa. O América deixou de perder de maneira compulsiva, beliscando, naquele final de primeiro turno, outra vitória importantíssima: 1x0 contra o Santos. Porém, por conta do início desastroso, os valiosos empates fora de casa e as poucas derrotas (duas no total) não foram suficientes para evitar que o América encerrasse aquela fase na lanterna, junto com o Novorizontino. Mas o pelotão intermediário não estava longe. E havia ainda todo o segundo turno. E seria nesse turno que o América galgaria o topo da tal "montanha-russa".
João Avelino comemora o gol de Toninho na vitória de 1x0 sobre o Santos:
a reação do clube no segundo-turno começou graças a ele (fonte: Diário da Região)
A melhora que se desenhava no final do primeiro turno se tornou realidade: a campanha do América no segundo turno foi primorosa. Uma única derrota em dezenove jogos. Se essa derrota não tivesse ocorrido bem no meio daquelas dezenove partidas (0x1 em Santo André), o América poderia ter tirado a "Taça dos Invictos" da Inter de Limeira, que a conquistou por ter ficado 17 partidas sem sofrer nenhuma derrota.
Só que esse brilhante desempenho não livrou o América de chegar à penúltima partida do campeonato com risco de ser rebaixado. Os motivos:
1) o péssimo primeiro turno;
2) apesar de ter perdido uma única vez, a quantidade de empates foi grande (doze ao todo), o que impediu que o time se desgarrasse de vez do "grupo de risco"; e
3) os outros concorrentes diretos ao rebaixamento também haviam reagido nesse mesmo segundo turno.
Escritos todos esses parágrafos, chegamos, enfim, ao tema principal deste texto: o jogo América x XV de Jaú, ocorrido numa quarta-feira, dia 13 de agosto. O famigerado "jogo da marmelada" como ficou conhecido à época.
Eu tinha 14 anos. Acompanhava o clube via rádio e jornais, como qualquer torcedor comum. Portanto, todas as histórias de bastidores que ouvi e que cercaram essa partida são aquelas, digamos, de "conhecimento público". Mas eu conheço de cor todas as "histórias de arquibancada". E muitas delas nunca foram abordadas em nenhum dos diversos textos que li sobre essa partida. E foi justamente por isso que me senti tentado a escrever este texto.
Tal como o América, o XV de Jaú vinha embalado naquele segundo turno depois de ter começado pessimamente o campeonato. O Galo da Comarca chegava a São José do Rio Preto para aquela partida decisiva depois de dois bons resultados: 0x0 contra o Palmeiras em Jaú no domingo anterior e vitória contra o Mogi Mirim, na casa do adversário, por 2x0. O América havia empatado suas duas últimas partidas em 0x0: contra o forte Palmeiras no Parque Antártica e contra o XV de Piracicaba no M.A.M.
A expectativa era a de um jogaço, visto que os dois times estavam "na ponta dos cascos". Mas, para minha surpresa, não era latente em todos os torcedores presentes na geral do M.A.M. o sentimento de que aquele jogo era assim tão decisivo para as pretensões do América quanto a ficar na primeira divisão. Não havia semblantes carregados como aqueles que cansei de ver em jogos de igual importância para as pretensões do América quanto a evitar um rebaixamento (exemplos: aquele jogo contra o Botafogo em 1987, aquele contra a Ferroviária em 1995 ou aquele contra o Ituano em 2007). E fica fácil explicar o porquê: a grande maioria da torcida americana tinha certeza de que o América não iria cair. Corroborava para essa "tranquilidade" o fato de o Comercial ter perdido para o Juventus no domingo anterior (4x3), sem falar que o América estava com 33 pontos, dois a mais que o Comercial, que folgaria naquela rodada de quarta-feira e teria um jogo teoricamente difícil na última rodada (o Santos, em Ribeirão Preto). Por fim, como o Mecão perdera apenas um jogo em dezessete partidas, não seria das tarefas mais difíceis conquistar um ponto em duas partidas. O XV estava na mesma posição do América. Na última rodada, ambos teriam jogos também teoricamente fáceis. O América enfrentaria o Juventus na Rua Javari e o XV jogaria contra o Santo André em Jaú. Com os dois times precisando de apenas um ponto para, matematicamente, se livrarem do rebaixamento, nenhum dos mais de cinco mil pagantes daquela noite imaginava que comprava um ingresso para ver o mais insólito espetáculo futebolístico de sua vida.
Eu, particularmente, estava tranquilo. Levando-se em consideração que destruo minhas unhas em simples amistoso do América, pode-se então ter um termômetro do quão interessado eu estava na partida propriamente dita e não na possibilidade de o América ser ou não rebaixado. Ouvindo os noticiários esportivos no dia do jogo na extinta Rádio Independência, também não notei que algo diferente pudesse acontecer. Chegando ao estádio, a movimentação de torcedores era intensa. A festa foi grande para recepcionar a entrada do plantel do América em campo. Começada a partida, não se notou nada diferente nos primeiros quinze minutos. O jogo estava razoavelmente pegado, com os dois times se estudando, como era de se esperar. Porém, diferentemente de todos os outros jogos, o América não demonstrava o mesmo ímpeto para atacar o seu adversário. Tanto Izael quanto Dito Siqueira não partiam para o drible como normalmente faziam. O XV tinha um meio-campo muito bom, comandado pelo ótimo Níveo. Mas a muralha defensiva do América não dava chances a qualquer tentativa de ataque do Galo da Comarca. Com Roberto Costa no gol (que havia jogado na seleção brasileira dois anos antes), o América tinha tomado míseros quatro gols em dezessete jogos naquele segundo turno, uma marca poucas vezes alcançada pelo clube em toda a sua história. O jogo caminhou para o término do primeiro tempo. E a avaliação de todos os torcedores que estavam na geral do M.A.M., até aquele momento, era que a partida tinha sido apenas "chata". Ninguém, até então, havia notado ou concluído que aquele era um "jogo de compadres". Mas, no segundo tempo, tudo mudou...
Ninguém sabe dizer ao certo se o tão falado "acordo" entre os dois clubes aconteceu no intervalo daquele jogo. Ou, quem sabe, se foi nos momentos que antecederam o apito inicial do árbitro Ulisses Tavares da Silva Filho. De todo modo, o que se sabe é que América e XV de Jaú tinham como técnicos duas "velhas raposas" do futebol paulista e brasileiro, respectivamente, João Avelino e Zé Duarte. No comando eletivo, o panorama não era diferente: o América era presidido pelo lendário Benedito "Birigui" Teixeira. O XV, pelo não menos experiente Waldemar Bauab. Cada um desses personagens tinha fortíssimos vínculos afetivos com suas agremiações. Havia rumores de que João Avelino havia sido visto entrando no vestiário do XV. Havia rumores de que Bauab fora visto nas cabines reservadas do M.A.M. procurando por "Birigui". Ninguém nunca veio a público para falar sobre o ocorrido. Talvez motivado pelo velho ditado de que "seguro morreu de velho", o comando de ambas as equipes deve ter achado mais prudente acabar com qualquer risco de rebaixamento naquele jogo mesmo. Só havia um problema: os cinco mil americanos que haviam pago seus ingressos naquela noite.
O jogo em seu segundo tempo simplesmente inexistiu. O que se viu foram duas equipes tocando a bola no seu campo, tentando tímidas investidas ao ataque, que eram claramente abortadas debaixo de risíveis recuos de bola. E aí as coisas saíram de controle. A torcida ficou impaciente. E ficou impaciente primordialmente por não concordar com o expediente adotado pelas duas equipes. E por concordarem que tanto América quanto XV não precisariam estar ali fazendo aquele atentado à ética no esporte. O que se seguiu foram atos típicos de "hooliganismo", daqueles que normalmente víamos em jogos na Inglaterra: assentos do setor das cadeiras cativas foram arrancados e atirados ao gramado; no setor das gerais, o público começou a encher de terra os copos de plástico de refrigerante para atirar ao gramado. Lembro-me vividamente dos comentários de diversos torcedores americanos durantes aqueles intermináveis quarenta e cinco minutos finais: "o América não precisa disso", "que vergonha"... Ou seja, todos ali queriam o América na primeira divisão, mas queriam de maneira legítima (algo que foi posto sob dúvida depois desse fatídico episódio). E foi esse meu único orgulho naquela noite: constatar que o torcedor do meu time não compactuava com o que estava acontecendo ali no gramado.
Detalhes do inconformismo da torcida americana: cadeiras cativas e copos arremessados ao
gramado do estádio Mário Alves Mendonça (fonte: Diário da Região)
Eu assisti a tudo aquilo de maneira incrédula. Se por um lado estava aliviado por saber que encerrava-se ali o risco de rebaixamento do meu Mecão, por outro estava angustiado por saber que o América seria alvo de comentários jocosos por muito tempo (algo que realmente aconteceu). Nunca eu odiei tanto um ditado como aquele que prega que "o fim justifica os meios".
Terminado o jogo, as tradicionais entrevistas no gramado não ocorreram ou os comentários foram rápidos e evasivos. Jogadores e comissões técnicas desceram rápido para seus vestiários. As entrevistas de pós-jogo também foram comprometidas porque as portas dos vestiários demoraram a ser abertas e quando o foram, muitos jogadores já tinham ido embora. Nunca condenei os jogadores por aquilo que fizeram em campo. Vários deles possuíam currículos exemplares sob o ponto de vista da ética. E, no fim das contas, eram empregados. Acho pouco provável que aquele "espetáculo" tenha sido combinado por iniciativa deles.
É óbvio que o Comercial achou ali a chance de lutar por sua permanência na primeira divisão. De posse do vídeo-tape da partida, entrou com diversos recursos na Federação Paulista de Futebol buscando manter-se na primeira divisão através de tribunais. Luta legítima, porém, improdutiva: a agremiação foi mesmo rebaixada. Por conta disso, o ódio do torcedor comercialino pelos times que protagonizaram aquele triste espetáculo e, óbvio, para com seus torcedores, aflorou. Uma grande pena. Do lado do América, nada disso seria necessário: o time venceu o último jogo contra o Juventus dentro da Rua Javari por 2x1. Ou seja, mesmo que perdesse aquele fatídico jogo para o XV de Jaú, o América ficaria na primeira divisão.
Se cada clube nesse mundão de meu Deus carrega algum erro crasso em sua história, o maior do meu amado clube foi aquele posto em prática naquela fatídica noite de quarta-feira.