Em 1990, eu estava no último ano do curso técnico de eletrotécnica. Sempre fui um bom aluno, não necessariamente o melhor da classe, mas era responsável. Tirava minhas boas notas, apesar de passar longe de ser a referência da classe em termos de inteligência. Trabalhava de dia numa fábrica de embalagens plásticas, ia para o distrito industrial de São José Do Rio Preto com minha brava bicicleta Monareta. Terminado o expediente no trabalho, o tempo era contadinho entre pedalar pra casa, tomar um banho, engolir o que minha mãezinha tivesse feito para o jantar e me pôr a "marchar" a pé para a escola. Dependendo do mês (e do orçamento), dava pra ir de ônibus.
Por conta dessa vida, me achava no direito de dar umas "escapadelas" de vez em quando por conta de um dos meus poucos vícios: ver os jogos do meu América. Não era algo comum esse tipo de atitude, mas, poxa, o que é que tinha fazer isso no último ano do colegial?
E assim foi. Numa noite quente do fim do verão da terrinha, um dia depois do meu aniversário, na quarta-feira, dia 14 de março, o Bragantino ia jogar no caldeirão Mário Alves Mendonça contra o América. O campeonato mal havia chegado à metade, porém, esse jogo ganhou contornos de decisão, dada a boa fase vivida pelo Bragantino (que seria o campeão paulista daquele ano) e da regularidade do América naquele certame. O Rubro estava com um elenco desprovido de grandes nomes mas com um técnico "prata da casa", Benedito Ambrósio, que sabia agregar atletas do tipo "carregador de piano". O fato é que havíamos vencido o São Paulo e empatado com o Palmeiras, dentre outros bons resultados. Enquanto isso, o Bragantino se mostrava um baita de um timaço.
Benedito “Compadre” Ambrósio (fonte Jornal Diário da Região)
Para conseguir chegar ao "M.A.M.", tracei uma estratégia com relação ao meu dia na escola: assistiria à primeira aula, entregaria um trabalho programado para aquele dia e, por fim, negociaria minha saída antecipada com os demais professores. Deu tudo mais certo do que eu poderia pressupor: todos os mestres, alguns dos quais estavam comigo desde o primeiro ano, sabiam quem eu era e o quanto eu era devotado ao time. Com consentimento de todos e de consciência tranquila, peguei minha "traia" escolar (uma prancheta com dois cadernos universitários de dez matérias, três apostilas, minha régua e meu estojo) e me pus a pé rumo ao estádio.
Pelos meus cálculos, faria o percurso de pouco mais de quatro quilômetros em cinquenta minutos. Daria tempo de chegar com folga ao campo, visto que os jogos naqueles tempos não começavam tão cedo.
Chegando próximo ao estádio, fui até a casa de um amigo que morava nas imediações e que era meu chapa desde os tempos em que estudamos juntos no colégio Pio X, distante dois quarteirões do M.A.M. Pedi que ele guardasse meu material da escola – sim, porque mesmo naqueles tempos entrar em um estádio de futebol com uma prancheta não era a mais sensata das ideias. Após ouvir a negativa do meu camarada quando o convidei a me acompanhar, estava, enfim, pronto para o jogo. O campo estava com um bom público. Como tinha ido a pé, o dinheiro economizado com o ônibus serviu para mandar um "dogão" para dentro do bucho, visto que o jantar de horas antes já era uma "lembrança distante".
Embate iniciado, o que se viu foi uma daquelas partidas típicas do interior de São Paulo: truncadona, pegada e com alguns choques "canela com canela" sendo ouvidos até por quem estava nos primeiros degraus da arquibancada. O jogo foi duríssimo, disputado palmo a palmo. O Bragantino tinha o inteligente Luis Muller na frente, Mauro Silva no meio de campo e o grande goleiro Marcelo. Já o América estava com o velho Marinho (já em final de carreira e sem o brilho de outrora) na ponta-direita, o talentoso Marcio Florêncio sendo anulado e a nossa zaga com Negão (improvisado na lateral), Roberto Fonseca (nosso eterno capitão), Amaral e Mauro batendo sem dó em tudo que passasse do meio-campo e tivesse camisa listrada. Zero a zero disputado na base das botinadas, enfim. E o Bragantino partindo para cima, o que era difícil naquela época, porque eu só estava acostumado a ver os grandes de São Paulo jogarem de igual para igual com o América no nosso estádio. Os times do interior, com raras exceções, armavam retrancas depravadas, sem nenhum tipo de vergonha.
Começo do segundo tempo, Bragantino vindo pra cima e comecei a temer pelo pior. Eis que, do nada, o Márcio Florêncio aproveita um raríssimo vacilo da zaga do Bragantino e, num contra-ataque, faz um a zero. Nem podia acreditar. Futebol sempre teve o estigma do "quem não faz, toma". Porém, não para o América que, azarado desde que me dou por gente, não se dava a esse trabalho de nos surpreender positivamente. Com o um a zero, era só segurar o jogo, o que nossos jogadores estavam fazendo com maestria, e garantir os pontos. Só não contávamos com um "probleminha": o bandeirinha chacoalhando seu instrumento como se disso dependesse sua vida. Confesso: nunca vi o replay desse lance. Naqueles segundos em que visualizei o lance, não me parecia ter ocorrido nada de ilegal, muito menos impedimento. Mas não adiantava chorar: o gol estava anulado.
- Só erram contra a gente, pensei.
Nessa hora, normalmente, o sangue ferve irremediavelmente. Me pus a descer os degraus do velho M.A.M., pintados intercaladamente de vermelho e branco. De alguma maneira, tentaria arrumar um espaço no concorrido alambrado para tentar dirigir minhas palavras de carinho àquele nobre representante do trio de arbitragem que, tão competentemente, garantira a legitimidade do resultado da partida hora em disputa. A minha cólera, como sempre, era tanta que rendeu mais alguns belos e inexatos verbetes da nossa bela língua portuguesa.
Nada como um belo desabafo como aquele para te aliviar. A gente tinha certeza de que o bandeirinha em questão, ou um outro qualquer, sempre ouvia o que você dizia, afinal, a linha lateral por onde corria o profissional do apito era a pouco mais de um metro do alambrado. Dependendo do braço do torcedor (e do descuido do bandeirinha) dava pra pegar o sujeito pelo colarinho...
O jogo continuou. O Bragantino pressionando e eu no alambrado, olhos grudados dentro de campo, naquele momento já rezando para que o jogo terminasse no honesto zero a zero – o que, a essa altura, seria um bom resultado, mas doía no coração saber que poderíamos ter ganho não fosse a falha do néscio de uniforme amarelo.
Mas o meu presente de aniversário, com um dia de atraso, haveria de chegar, exatamente aos 43 minutos daquele segundo tempo: em um dos poucos ataques do América, a bola sobrou para o nosso eterno capitão Roberto Fonseca. Zagueiro central exemplar, de impulsão impressionante e toque de bola refinado, defendia as cores do América desde 1985. E continuou conosco até 1993. Nesses oito anos em que ele envergou o manto sagrado americano, fez pouquíssimos gols. Mas, sabe-se lá porque, ali estava ele, no bico da grande área no ataque do Mecão. Após um bate-rebate, a bola sobrou pra ele que, de pé direito, meteu um chute forte e rasteiro... Todo mundo com os olhos estatelados vendo a bola ir em direção ao pé da trave... e a rede balançando. Muitos torcedores ficaram confusos. Eu, inclusive. O pessoal no alto da arquibancada comemorava de maneira confusa. Em segundos, uma onda de jogadores se forma ao redor do juiz. Começamos a entender o porquê do rebuliço e da confusão: a bola entrara por fora, furando a rede e parando dentro do gol. Foi como se todos nós, que estávamos ali recostados no alambrado desde o turbilhão da anulação do primeiro gol, tivéssemos ensaiado o assédio que se seguiu: sem cerimônias, aquele alambrado virou um inferno de torcedores gritando às costas do bandeirinha.
- Corre pro meio de campo, safado!!! Corre que foi gol!!! Tá fazendo o que aí parado, porra??
E, caros amigos, não há coragem que resista a um estádio inteiro gritando nos seus calcanhares. Sei lá se o bandeirinha se confundiu. Sei lá se ele achou que foi gol mesmo. Enfim, sei lá. Fato é que se instaurou a balbúrdia no estádio. Os caras do Bragantino endoidaram! Cercaram o árbitro, mostraram a rede. Luxemburgo, que era técnico do Bragantino, estava incontrolável. E eu também. Porque, da mesma forma que cansei de ver o América ser roubado, tinha plena certeza de que o juiz não voltaria atrás da sua decisão. Quando o juiz saiu do bolo de jogadores e se dirigiu ao encontro do bandeirinha, o que ele viu não foi um colega de trabalho: foi uma alma penada. Abortou o processo e correu para o meio do campo. Gol confirmado. 1x0!! Que vitória histórica.
Roberto, nosso eterno capitão, em jogo contra a Inter de Limeira em 1987 (fonte Jornal Diário da Região)
Jogo terminado, a comemoração tinha contornos de "lavagem de alma". Caminhei quarenta minutos até em casa com um sorriso indisfarçável no rosto – sorriso esse que tive que engolir na hora em que cheguei ao meu lar. Afinal, meu pai não sabia que eu tinha matado aula. E era de bom grado que ele continuasse a não saber. Ao encontrá-lo, vejo um sorriso de orelha a orelha, típico daqueles que ele dá quando o América vencia um jogo como aquele. Ele chegou até mim e me diz:
- Que jogo que você perdeu hoje! Já ficou sabendo o que aconteceu?
- Pois é, pai... Fiquei sabendo.
- Vamos tomar uma cervejinha para comemorar!!!, sugeriu ele.
E lá fomos nós. E, sinto decepcioná-los, mas não seria eu que estragaria essa noite perfeita contando a mais pura verdade.