O “Burro da Central” foi uma novidade que surgiu no Paulistão junto com a nova década (80) que se iniciava. Não me lembro ao certo como foi o seu acesso à primeira divisão do futebol paulista. Mas me lembro que todos os quadrangulares que definiam quais times da segunda divisão paulista subiriam eram muito disputados. A grande maioria deles era disputado em São Paulo, mais especificamente no Pacaembu, com transmissão ao vivo pela TV. Era um grande barato assistir àquilo em uma época onde as transmissões de partidas de futebol não eram algo corriqueiro. Que dirá de times do interior. Obviamente, não havia ainda a internet e aquela era uma excelente oportunidade para conhecer os “novos” adversários do meu Mecão.
De imediato, me chamava a atenção o ineditismo do belíssimo uniforme do Taubaté: camisa azul com faixa transversal branca. E não foi difícil descobrir que Taubaté era uma cidade de grande porte, com uma torcida também fanática, tal como eram os principais times do interior de São Paulo. Ou seja, jogar no “Joaquinzão”, apelido do estádio do Taubaté, não seria fácil de jeito nenhum.
E a projeção se mostrou certeira quando o América chegou a Taubaté para enfrentar o “Burrão” dentro do seu caldeirão em um domingo à tarde de 1980, pela sétima rodada do primeiro turno. Os onze mil torcedores faziam tanto barulho que, por diversas vezes, encobriram a voz do narrador da rádio Independência. Dava um arrepio na espinha na hora que o estardalhaço ficava maior porque, conforme a intensidade ia abaixando, era possível começar a ouvir o indefectível grito de “gooooooool” do time da casa urrado a plenos pulmões pelo narrador da, hoje, extinta rádio. Por outro lado, era possível ouvir pensamentos quando o Mecão marcava os seus gols. E esse jogo foi assim mesmo: repleto de alternâncias e possibilidades. O América vencia por 2x1 até os 43 minutos do segundo tempo. E, da maneira mais dolorida que existe no futebol, perdemos o jogo tomando dois gols em dois minutos. No fim, Taubaté 3x2. E não havia do que se envergonhar pois o time do Taubaté era realmente muito bom e terminou aquele primeiro turno em sexto lugar. Mas, naquela tarde de domingo, após o terceiro gol feito pelo Toninho Taino, meu pai deu um pulo. Se dirigiu a mim vociferando: “Como é que pode?? Como é que conseguem?? Tomar dois gols em dois minutos!!!! Esses caras estão de brincadeira!!!”. Eu, então com oito anos, não respondi nada. Afinal, não era um diálogo. Era só um desabafo desatinado de um velho torcedor. Cabia a mim apenas ficar ali, petrificado, sem fazer nenhum movimento errado, esperar ele sair de perto e procurar algum lugar bem longe dele. Foi o que fiz. Pude vê-lo ainda irritado, zanzando pela varanda de nossa humilde casa, com o seu rádio em punho, ouvindo as explicações dos jogadores para aquela derrota.
Edmar (centro-avante do Taubaté e futuro atacante do Corínthians) e Marinho (ponta-direita do América
e futuro jogador da Seleção Brasileira): protagonistas no primeiro jogo entre as equipes,
válido pela primeira divisão paulista. Edmar fez dois gols. Marinho fez um.
No segundo turno, no jogo da volta em São José do Rio Preto, pude ver o Taubaté em campo ao vivo pela primeira vez. Foi também em um domingo à tarde. Uma parte considerável dos jogadores do elenco do América que fizera a brilhante campanha no Paulistão do ano anterior havia deixado o clube. Mas o time ainda tinha muita qualidade. E encaçapou o Taubaté no seu campo de defesa. Quantos gols perdemos naquela tarde, meu Deus? E o castigo veio quase no final do segundo tempo, com dois gols em menos de cinco minutos, tal como ocorrera no jogo do primeiro turno. “Que carniça que é esse Taubaté!”, concluía meu pai, já na saída do estádio. “Esse vai ser outro Juventus na nossa vida!”. Surgia ali uma “rivalidade” contra o caçula da primeira divisão do campeonato paulista. Talvez ninguém tenha notado. Talvez ninguém tenha escrito sobre isso. Mas essa “rivalidade” existiu. E a acompanhamos ano-a-ano, eu e meu pai.
Não vencemos nenhum dos dois jogos nos anos seguintes (Certames de 1981 e 1982): um empate e uma derrota nos jogos em Taubaté, um empate e uma derrota nos jogos em São José do Rio Preto.
De todos esses jogos, o que mais me marcou foi aquele válido pelo segundo turno do certame de 82, em São José do Rio Preto, em uma quarta-feira à noite no nosso inesquecível estádio Mário Alves Mendonça. Nem tanto pelo jogo em si. Bom, permitam-me contar-lhes a passagem: morávamos ali na Rua Humaitá, na Vila Diniz. Nossa casa estava a dez minutos do estádio, indo a pé. Naquela noite, eu, meu pai e toda a nossa indumentária (camisas, rádio, bandeira de mão) botaríamos os pés no asfalto a caminho do velho MAM. Aquela era mais uma chance valiosa de botar fim à (quase) “Maldição do Taubaté”. Um placar mínimo já seria suficiente. Aquele ano futebolístico vinha sendo terrível até então. Foi o ano em que nossa seleção brasileira perdeu aquele fatídico jogo para a Itália. Não sei como meu pai torcera nas outras copas do mundo para nosso time canarinho. Ele nunca me contou nada a respeito. Só sei que ele acompanhou aquela seleção com muita dedicação. E o final daquela história foi trágico para quem gosta de futebol, como todos hoje estamos cansados de saber. Inclusive para ele. Pois bem, talvez, na sua cabeça, o destino reservaria para aquele ano a alegria de poder defenestrar o Taubaté. Só podia ser isso! Afinal, ao fecharmos o portão de casa, aprendi da pior maneira aquele ditado que diz “em boca fechada, não entra mosquito”.
“Só faltava a gente perder de novo para o Taubaté hoje né, pai?”
A língua foi mais rápida que o cérebro. Algo normal em um garoto de dez anos que queria puxar um assunto com seu pai no caminho de casa até o estádio. Foi mais forte do que eu. Quando vi, eu já tinha perguntado. Se fosse hoje, eu diria: “Esquece, pai. Foi sem querer. Não tá mais aqui quem falou”. Mas eu não falei nada. E a fitada fulminante que tomei do meu pai foi tão dolorida como qualquer sova que tomei de minha amada mãe. Meu pai me educou de forma rígida, porém, nunca encostou um dedo sequer em mim. Mas o olhar repleto de reprovação que ele dirigiu a mim naquela noite, com certeza, está no meu Top 3. E adivinhem o placar do jogo? Pois é: perdemos por 0x2. A prudência determinou que eu ficasse afastado do meu pai por alguns dias. E assim o fiz. Para alguém normal, todo esse contexto pode soar absurdo. E talvez seja mesmo. Mas para muitos torcedores, evitar comentários agourentos, antes, durante e depois de um jogo de futebol, é algo importante. Hoje, eu entendo meu pai. Até porque, acabei ficando igual a ele.
Chegou o Paulistão de 1983. O América começara bem o campeonato. A vitória de virada sobre o Santo André no MAM, por 2x1, colocara o Rubro em uma ótima colocação no torneio. O próximo jogo seria contra o Taubaté. E foi ali que tomamos “a escovada”: foi um 4x0 daqueles de “nos fazer perder o rumo de casa”. Bom, isso não ocorreu: o América perdeu mesmo foi o rumo do campeonato. Aquela foi a primeira de uma série de seis derrotas seguidas que decretou a queda da comissão técnica daquele ano, visto que o Mecão foi catapultado para a zona de rebaixamento na tábua de classificação.
Com a demissão de Ernesto Guedes, quem o América poderia contratar como técnico para tentar livrá-lo do risco de ser rebaixado? Só mesmo um “salvador da pátria”. Entra, João Avelino!!! O velho “71” botou ordem na casa já nos primeiros jogos. Foram nove partidas seguidas sem derrotas, com vitórias clássicas nesse interim. Chegamos ao final do campeonato sem ao menos lembrar que havíamos passado por aquelas agruras do primeiro turno.
Mas ainda havia algo a ser feito. Uma maldição para se pôr fim. Anti-penúltima rodada: América x Taubaté. Sabadão de sol no Mário Alves Mendonça. Mecão com Biônico no ataque, Baroninho na esquerda, Fumaça e Jorge Lima na zaga, Valô no gol... e o velho “71” no banco. Em êxtase, eu projetava: “É hoje, porra!”. E foi.
Trucidamos o Taubaté. Não houve chances de gol para o Burro da Central. Eles simplesmente não conseguiam passar do meio-campo. Ainda assim, por infindáveis quarentra e quatro minutos do primeiro tempo, o gol teimou em não sair. Mas ele saiu. E, ironia do destino, coube ao nosso zagueirão Orlando Fumaça a honra de socar aquela pelota pra dentro do gol taubateano. Enfim, 1x0!!! Aos trinta minutos do segundo tempo, Baroninho soltou uma patada magistral, algo que era sua marca registrada, balançando a rede do MAM pela segunda vez, desafogando nossas almas e colocando um ponto final àquela agonia. América 2x0 Taubaté. Fim da maldição!!!
Com exceção do goleiro Paulo César, esse foi o time que pôs fim ao tabu do Rubro contra o Taubaté
Eu e meu velho voltamos para casa em êxtase. Como de costume, aquela era uma daquelas ocasiões onde qualquer estranho virava “um amigo de longa data” e com quem meu pai batia um animado papo enquanto subíamos a Avenida América rumo à nossa casa.
“Pelo amor de Deus, até que enfim ganhamos uma desse Taubaté”, desafogava ele. A maioria nem se dava conta que o Taubaté era um desses ossos que tínhamos atravessados na garganta. Bom, eu e meu pai sabíamos. E, tal como imaginávamos, essa vitória trouxe bons agouros para o Mecão: no campeonato seguinte, vencemos os dois jogos contra o Taubaté (ambos por 1x0).
Infelizmente, o Taubaté foi rebaixado ao término daquele certame (1984). Um confronto de respeito que se desenhava no horizonte foi interrompido: Diabo x Burro da Central!!! Triste para o futebol interiorano. Por outro lado, excelente para manter harmoniosa a minha relação com meu pai. Quanto menos Taubaté na nossa vida, melhor.
América 1x0 Taubaté, Paulistão de 1984. Na foto, o ponta-direita Ílton,
autor do gol, em disputa contra o jogador do Taubaté, Cleto.